Selvagens por natureza
Autoilusão dá vida aos Homo sapiens globalizados. Vestígios do passado ainda habitam nosso inconsciente. Descobri-los e superá-los é o caminho para extinguir o autoengano
Por Armando Correa de Siqueira Neto
O homem possui uma imensa dívida consigo mesmo. Trata-se da superação do autoengano, elemento de defesa psíquica que atua em seu socorro cada vez que a verdade se impõe dolorosa. O autoengano provavelmente surgiu nos primórdios do uso do raciocínio, quando o ser humano passou a se perceber sob a luz da razão, levando-o, consequentemente, a sofrer com tal descoberta. Quanto mais adentrava no universo da sapiência, maior era a sua agonia ante a visão animalesca e sombria que tinha de si mesmo. Ele precisou defender-se do mal-estar que lhe invadiu impiedosa e esmagadoramente, desenvolvendo, assim, o jogo da autoilusão; exercitado e aperfeiçoado desde então, chegou à contemporaneidade.
Todavia, ascender ao degrau evolutivo de tal superação requer o rompimento com a etapa infantil na qual grossa parte das pessoas ainda se encontra inconscientemente envolvida, atingindo novo e vital estágio de maturidade. Para tanto, é importante parar de apontar o dedo da culpa para o lado de fora de si e entender definitivamente que há uma responsabilidade pessoal a se assumir integralmente diante das consequências causadas.
Infelizmente, como dominador o homem soube apenas conter o seu próximo, fazendo-lhe mal em graus que variam da simples retenção ao cruel sadismo e, em certos casos, agindo de modo psicopático por meio de comportamentos caracterizados pela frieza afetiva. Foi justamente quando se deu a civilização que, pelos costumes, leis e amparo religioso o homem passou a escravizar o homem.
"Enquanto a responsabilidade não recair sobre si mesmo, a infantilidade permanecerá disfarçada de azar"
Mesopotâmia, China, Egito, Grécia, Roma, América Pré e Pós-colombiana deram a sua aula de escravização com tenebroso primor registrado inequivocamente pelas obscuras páginas da história. Outros registros macabros de dominação vicejam no século XX: os campos de concentração nazistas e os seus 6 milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, entre tantos outros. Ressalte-se que cada época e local teve sua própria alegação para impor a escravidão ou seus ideais, mas o que se aprecia aqui, todavia, é o fenômeno comum da dominação perpetrado pelo homem.
Dominar a si mesmo, no entanto, faltou
Na verdade, se for possível admitir, sem recorrer ao autoengano, mesmo sob a dor da torturante luz do reconhecimento, o bicho ainda está bem solto. Tanto na vizinhança quanto dentro de casa, a pré-história e a história coabitam. A autoilusão faz o seu jogo ao entorpecer as ideias do seu autor, alegando-lhe que os outros são atrasados, e ele, ao contrário, é tão somente uma vítima que se vê obrigada a se defender dos ataques violentos, usando para isso, de igual ou superior violência. Não se reflete, porém, que se é prisioneiro das informações genéticas e, portanto, somente por meio da consciência a esse respeito que se pode evoluir e deixar para trás, gradativamente, o lado natural, grotesco e por vezes perigoso.
Olhando para si mesmo
O entorpecimento psicológico turva a mente daquele que se acomoda e pouco luta em seu próprio favor, pois enquanto houver a crença de que os outros são os culpados pelo tipo de vida que se leva, pouco se andará na direção do crescimento. Enquanto a responsabilidade não recair sobre si mesmo, a infantilidade permanecerá disfarçada de azar e infelicidade. Não é à toa que se tornou famoso o grego Sócrates, que tanto cultivou hutterstocka reflexão (“conhece-te a ti mesmo”) e a análise das equivocadas impressões que temos acerca de nós mesmos e das coisas ao nosso redor, fato este que o levou à sentença de morte (sob a acusação de corromper os jovens, desrespeitar os deuses e violar as leis) por maioria de votos dos 500 atenienses que o julgaram em
Saiba mais
Sem o autoengano, nossa vida seria extremamente dolorosa. O livro Auto-Engano (Companhia de Bolso) mostra, em uma linguagem acessível, como nos sabotamos para que nossa vida possa ter o encanto que acreditamos que ela tenha. A obra também mostra as mentiras que costumamos nos pregar, o perigo dos excessos e como evitar sofrimento com a autoilusão.
Fonte: Portal Ciência e Vida, da Revista Psique, Edição 44, em 22/08/2010, às 11:32.
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