Psicopatologia
Existe prazer em matar?
Ao se aplicar a teoria freudiana à criminalidade, há indicações de um conflito entre o superego, id e ego, que favorece o surgimento de um egoísmo ilimitado, um forte impulso destruidor
Por Cláudia Maria França Pádua
O ser humano é agressivo e a agressividade é a conduta essencial à sobrevivência: seja para caçar, disputar parceiros sexuais ou para sobrepujar outros na conquista de bens escassos. Além disso, no caso do ser humano, a agressividade está relacionada com as atividades de pensamento, imaginação e ação verba/não verbal.
Consequentemente, alguém "muito bonzinho" poderá ter fantasias destrutivas ou até mesmo sua agressividade poderá se manifestar pela sua ironia, tornando-se irreconhecível perante as pessoas com quem convive. A educação e o meio social buscam o controle dessa agressividade. Assim, desde criança o ser humano aprende a reprimi-la e a não expressá-la de modo descontrolado e descontínuo, ao mesmo tempo em que a cultura cria condições de levar esses mesmos impulsos para as artes, esportes etc.
Para a Psicanálise, a agressividade é constitutiva do ser humano, é a ruptura do pacto social na própria sociedade, é a perfeita anomia representada pelo sujeito. E esse rompimento social pode implicar do ponto de vista inconsciente, a ruptura com o pacto edípico, desencadeando comportamentos delinquentes. Esse esvaziamento do real valor simbólico da lei, introjetada por Freud, é o verdadeiro sentido psicanalítico desta ausência de regras. Freud, como psicanalista, construiu sua teoria permeando nas evidências da constituição do sujeito a implicação da relação com o outro.
Essa função controladora ocorre no processo de socialização, no qual se espera que, a partir de vínculos significativos que o indivíduo estabelece com os outros, ele passe a internalizar os controles. Aí deixa de ser necessário o controle externo, porque o controle interno já se encontra dentro do indivíduo. Em todos os grupos sociais há mecanismos de controle e/ou punição dos comportamentos agressivos que não são valorizados pelo próprio grupo. E a sociedade também apresenta seus mecanismos, que se apresentam nas leis.
A estrutura social define o status e os papéis dos sujeitos e a estrutura cultural define as metas a serem alcançadas por parte dos membros da sociedade, assim como normas que devem seguir para que alcancem metas estabelecidas. A fragmentação do mundo social se revela quando somos incapazes de impedir que a violência se desencadeie como alternativa à solução de carências e conflitos, uma forma de reação pretextada pela luta pela sobrevivência, alimentando cada vez mais violência num processo social desenfreado e competitivo. As causas deste processo são multifatoriais e suas facetas são múltiplas.
A Psicologia Criminal, juntamente com a Psicanálise, verifica o estudo das relações entre o fenômeno exercido ou vivido do crime e a personalidade de seu autor e também da própria vítima, permitindo uma compreensão apurada dos acontecimentos da ação e do sofrimento alheio, associando a tudo isso um estado de "perturbação mental", alterando com desvios de comportamento quando o indivíduo alterna desempenhos na sua capacidade pensante.
Este transtorno está ligado a um estado de afetividade que se manifesta em violência, com requintes de crueldade e motivação momentânea. Pela motivação para a prática do ato violento pode-se considerar a existência de basicamente dois tipos de homicidas: o homicida emocional age com violenta emoção, por perceber a ocorrência de provocação injusta (causando indignação) por parte da vítima, produzindo uma ira que conduz à prática do delito, sem intervalo entre a provocação e reação. Já o homicida passional possui a incerteza do enigma de ser ou não amado (impotência para o desejo do outro) e assim vive uma experiência de privação, cuja incerteza o leva à prática delituosa. O que ele deseja é apenas a morte, símbolo imaginário que se caracteriza com seus desejos íntimos, ritualizados por prazer sádico. Esse desejo se revela no ato de destruir o outro "ruim", cuja dor sofrida é vista pela ação agressiva como uma compensação ritualizada do prazer.
Sigmund Freud considera o complexo da violência como algo decorrente de possuir o homem um instinto natural agressivo. Ao se aplicar a teoria freudiana à criminalidade, há indicações de um conflito entre o superego, id e ego, favorecendo o surgimento de um egoísmo ilimitado, um forte impulso destruidor, uma ausência total de amor e uma falta de avaliação emocional dos seres humanos vistos como objetos, com um sentimento de culpabilidade que se busca sufocar por vários tipos de racionalização.
Freud explorou o conceito de que existe um conflito dentro das pessoas. O conflito seria de um instinto animal, recusado pela sociedade, causando então uma resistência do sujeito ao instinto. O sujeito reprime o instinto para o inconsciente e procura substituí-lo por outros métodos de compensação. Em sua teoria, Freud identifica vários métodos de compensação.
A pulsão tem por objetivo a satisfação plena. Quando a pulsão surge, ela tende coercitivamente para a realização do objeto focado. Para Freud, a pulsão é a transformação operada no par de opostos: sadismo e masoquismo (GARCIA-ROZA, 1988, p.128).
Essas três polaridades articulam-se entre si e são responsáveis pelas vicissitudes das pulsões.
A base explicativa para essas expressões de destrutividade que caracterizam a agressão e a violência do ser humano é a fusão pulsional que impera e ativa para atos homicidas; a pulsão de vida e a de morte. Um excesso de agressividade sexual transformará um amante num criminoso sexual, enquanto uma nítida diminuição no fator agressivo o tornará tímido ou até mesmo impotente. A desfusão jamais atinge o ponto extremo das duas pulsões funcionarem autonomamente. A ideia de uma autonomia completa das pulsões é uma ideia limite análoga a do funcionamento autônomo do princípio de prazer e da realidade.
Os matadores têm consciência de que se trata de um delito, mas a busca do prazer os impulsiona cada vez mais para cometer atos homicidas. É o desejo de matar que impulsiona a ação e a realização do ato.
Após o crime, há uma sensação de alívio e prazer. Prazer que assume diversas formas: alívio de um estado tensional, no qual a tensão se estabelece pela incerteza quanto à concretização do ato, e que se exaure após a morte da vítima. Prazer de abater a caça, eventualmente associado ao da exibição posterior de algum troféu ou fetiche, representado por um pertence ou parte do corpo da vítima. Prazer derivado da sensação de poder por abater a caça ou o adversário, mostrando-se mais forte ou mais inteligente do que ele. Prazer de poder manipular livremente o corpo inerte da vítima, com domínio total. Prazer de alcançar o usufruto de tudo aquilo que pertencia à vítima, tomando assim o seu lugar, por direito de conquista. Prazer de posteriormente assistir à reconstituição do próprio crime, ou de assistir às notícias e comentários acerca do delito.
Prazer de verificar seu grau de astúcia pelo acompanhamento das investigações, procurando saber que elementos de prova foram recolhidos, e pode até retornar ao local do crime para se inteirar dos acontecimentos posteriores ligados ao mesmo.
Os criminosos homicidas são considerados inteligentes, porque programam com argúcia seus delitos e raramente deixam rastros. O criminoso rebusca suas ações, mascara e fantasia cada cena vivida e reconstrói uma imagem de legítima defesa, para afirmar sua virilidade ao derrotar um antagonista - constrói um cenário próprio no qual "justifica" sua ação com a ideia de que "se tivesse permitido ao outro reagir, ele poderia ter levado a melhor".
Há algo de misterioso, envolvente nesta busca: o criminoso estuda sua vítima, trilha caminhos em que a envolverá e projeta um discurso interessante que denota prazer nas atitudes, gestos e fala. E assim ele percorre o caminho, com ares de matador profissional.
O comportamento violento nunca poderá ser atribuído a uma única causa (tendência inata, patologia, ambiente desfavorável, experiências negativas). É preciso compreender que a combinação destes fatores é que engendram o comportamento violento.
A reflexão sobre a multiplicidade do prazer, gerando violência, permite identificar um extenso conjunto de observações, questões e emoções do ser humano que integram o complexo criminológico.
A trajetória e o percurso do criminoso, seu perfil, a descoberta de várias facetas que o levam a cometer o crime, e consequentemente ao prazer absoluto, revelando que o ato de matar consiste na repetição de movimentos e de uma busca multifacetária da libido.
A violência se traduz em arquétipos, personalidades, características, perfis e história, e se apresenta das mais variadas e facetadas formas, nas quais os arquétipos simbolizam as verdades de cada indivíduo, e repousa no inconsciente mais profundo do ser em que habita.
A violência é o uso desejado da agressividade, que pode ser: |
A violência se encontra enraizada no ser humano, como impulso atávico, ainda que a convivência social promova o repúdio ao seu emprego. Talvez a solução passe por uma transformação do indivíduo na sua forma de interação com a sociedade da qual ele é membro atuante.
O ser humano que se propõe a mudar se destitui do velho homem para dar lugar ao novo, a fim de reestruturar e renovar suas atitudes morais e sociais. Esse ser humano terá conseguido sublimar ou redirecionar sua pulsão destrutiva para algo socialmente valorizado.
O crime persiste na multiplicidade de fatores que o alimentam e no prazer sentido por aquele que o pratica, que o leva a constantemente buscar reconhecimento perante seu grupo social. O desafio que se apresenta ao limite humano é o de construir efetivas respostas para o infinito prazer de matar.
Finalizando, acredito que a violência possui uma multiplicidade do prazer que nos permitiu perceber a busca infindável da complexidade do ser humano, de quem cada ato assume múltiplas facetas nos fatos criminosos que se realizam como estímulos do prazer e o fazem acreditar em seu próprio poder.
Referências
PÁDUA, Cláudia M. F. O Criminoso e seu juízo...Existe prazer em matar? Belo Horizonte: Líder, 2008, 103p. |
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